quinta-feira, 30 de julho de 2009

quarta-feira

madrugada, chovia, e da rua de paralelepípedos podia-se sentir o cheiro de pedra e terra molhada que tornava o clima ainda mais úmido. no canto da rua havia um amontoado de entulhos (caixas de papelão, latas, telhas etc) que sobravam da construção do final da rua. dentro de uma dessas caixas de papelão dormia gomes, um cachorro grande e preto. gomes era solitário e gostava disso. alguns diziam que ele era apenas orgulhoso e que não passava de um cachorro calado e triste. gomes tinha um olhar sério e um latido suave e grave. era dócil e quando se sentia feliz abanava o rabo como uma criança. não era triste nem orgulhoso, era apenas calmo e preguiçoso. gomes tinha apenas um amigo em que realmente confiava: arlindo, um porteiro de um dos prédio que ficava na rua. arlindo era um senhor de 62 anos, negro, cabelos esbranquiçados. era meio gordinho, tinha uma voz grave e uma risada alta e engraçada. pegava o turno da madrugada nas segundas, quartas e sextas. sempre levava biscoito para gomes - que também sempre o esperava ansioso - e depois ficava sentado na escada do portão do prédio olhando a rua, fumando e fazendo cafuné no cão. como essa noite tava chovendo e era quarta-feira, arlindo abriu o portão e gomes veio andando, quase correndo, na chuva e entrou de baixo da proteção de aclirico transparente. sentaram na escada na parte de dentro do prédio e ficaram os dois olhando pelo portão vendo a rua e ouvindo chuva que caía forte. as poças iam se formando, um carro de vez em quando passando e jogando água pra cima da calçada, o poste com defeito que acendia e apagava. a madrugada foi ficando fria e arlindo pegou um pano velho que tinha no chão da guarita e passou no pelo meio molhado de gomes que abria os olhos devagar e rapidamente os fechava. ficavam alí; os dois, curtindo a companhia um do outro e a companhia de si mesmos. curtindo o silêncio e a paz da madrugada chuvosa. as horas iam passando e o dia ia nascendo com a mesma calma de todos os dias. algumas pessoas passavam de guarda-chuva, outras passavam correndo e se escondiam de baixo do ponto de ônibus, outras apenas caminhavam e não ligavam para o restinho da chuva fina que caía e nem molhava. deu seis horas, arlindo disse passando a mão na cabeça de gomes: 'brigado pela companhia mais uma vez, meu amigo', levantou-se e abriu o portão. gomes levantou em câmera lenta, se esticou feito um gato preguiçoso e saiu pelo portão. sentou na calçada com o olhar fixo em arlindo que andava e entrava na guarita. quando ele sumia atrás do vidro negro, gomes atravessava a rua bocejando e com passos lentos entrava novamente na sua caixa de papelão e dormia até que sentisse fome. às sete horas arlindo pegava a mochila e o guarda-chuva, esperava o ônibus, ia para casa e também dormia até a hora do almoço.

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